O direito a uma vida digna




Moradores de rua: o exílio na sociedade
Falta de emprego e de apoio familiar, ausência de perspectiva na vida, descaso político e preconceito são os componentes da massa de moradores de rua da cidade de São Paulo

A vasta cabeleira amarelada e oleosa, unidos a barba em igual estado, serve de moldura para o rosto enrugado, com dois olhos azuis e lacrimosos. As unhas estão compridas e pretas. Três meses sem banho, a sujeira se acumula em camadas sobre a pele. Veste calça blue jeans rasgada nos joelhos e um blusão xadrez de preto com vermelho. Faz frio. Ajeita o papelão na calçada da Av. Melo Freire, entre dois pilares do muro da estação Tatuapé do metrô. Como travesseiro, usa o saco de sisal onde guarda os poucos pertences. Vira o corpo para a parede e se cobre até a cabeça. Nem assim consegue encobrir o cheiro de álcool exalado pelo seu corpo. O estomago ronca: “quando a gente dorme, a fome passa”, diz ele. E ele é Antônio Carlos, 62, morador de rua há 11 anos.
Antônio Carlos era metalúrgico até a década de 80, nesse período perdeu o emprego devido uma das greves mobilizada pelo até então líder sindical Luis Inácio da Silva. Arrumou trabalho como vigilante noturno. No entanto, com um salário inferior. O padrão de vida caiu e as cobranças familiares aumentaram. A situação piorou quando a esposa Araceles Aparecida lopes e as duas filhas Andréia Lopes Soares e Márcia Lopes Soares, tornaram-se fiéis da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus). “A situação tava difícil, mas nunca deixei faltar comida em casa, mas se ficasse dando dízimo pra igreja, com certeza, faltaria”, afirma Antônio.
Durante a entrevista, Antônio faz longas pausas, como se houve espaços em branco na memória. De súbito, recomeça a falar rapidamente, com medo de que as lembranças pudessem sumir da mesma forma que vieram.
- Daí, minha mulher arranjou emprego na casa de um pastor e me colocou pra fora de casa. Já tinha morrido todos os meus parentes, fiquei tão desgostoso que comecei a beber e o resultado é isso aqui que você pode ver.
Há 8 anos, em 2002, Antônio foi à IURD da Av. Celso Garcia em busca de Andréia, a filha mais velha. Foi atendido por um pastor – cujo nome esquecera – e soube que a filha havia sido mandada para o México como missionária da Igreja. A partir daí perdeu o contato também com a ex-esposa e a filha mais nova.
Atualmente, com 25 anos de registro em carteira de trabalho, Antônio procurou a Defensoria Pública do Estado para tentar se aposentar. “Impossível, o senhor não tempo suficiente de contribuição, não é inválido e faltam três anos para se aposentar por idade”, explicou o advogado.

As faces dos moradores de rua

As faces dos desabrigados estão relacionadas com o tipo de problema que os leva a ficar em situação de rua. As causas comuns são: desemprego; falta de estrutura familiar; problemas com a justiça; vícios (drogas ilícitas e lícitas, como o álcool) além de problemas mentais.
De acordo com pesquisa realizada pelo Comped (Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas) 80% dos moradores de rua são dependentes químicos. Esses vícios podem ser o motivo tanto de eles chegarem à situação de rua, como também podem ser desenvolvidos pela falta de perspectivas em se reintegrar a sociedade depois de se encontrar nesse estado.
Longe das pesquisas acadêmicas, os próprios moradores de rua se classificam entre si de acordo com a conduta moral de cada um.
Existem pessoas como Antônio Carlos, abandonado pela familiar e frustrado por fracassos pessoais. Mas, por outro lado, existem os criminosos: roubam para sustentar o vício das drogas e na maior parte dos casos se recusam a reintegração social. Este segundo grupo é responsável pelo preconceito gerado na sociedade com os moradores de ruas. Quer dizer, todos são vagabundos e/ou bandidos.

Albergues e outras políticas públicas

Estudo recente feito pela FIPE (Instituto de Pesquisas Econômicas) revela a existência de 18.000 moradores de rua em São Paulo. Em 2000, o censo anterior, eram 9 mil pessoas nessa situação. Esses dados indicam que, em dez anos, houve aumento de 100% na população de desabrigados.
Para essa quantidade de pessoas, existem 7 mil vagas em albergues na região paulistana. Mesmo assim sobram vagas. Isso acontece porque os moradores de rua são impedidos de entrar com pertences, inclusive cães, além de muitos reclamarem da violência e da algazarra que se estende noite a fora dentro dos próprios centros de recolhimento. Por isso, alguns deles acreditam que as ruas acabam se tornando mais tranquilas e privativas.
A Secretaria Municipal de Assistência Social desenvolve também o programa Operação Baixa Temperatura: são 40 Centros de Acolhida (Albergues e Centros Especiais) que ampliam as vagas em 20% quando a temperatura atinge 13 graus centigrados.
No entanto, todas essas medidas são paliativas, afirma o psiquiatra Marcos Manfrevilli, especialista em dependência química. “As políticas públicas para esse setor são ineficientes. Se os moradores de rua não receberem acompanhamento médico adequado para o tratamento da dependência química em álcool ou drogas, a chance de reintegração à sociedade é quase zero”, afirma Manfrevilli.

O reencontro que não aconteceu

Fui à Igreja Universal três vezes em busca de Andréia, sem resultado. Consegui encontrá-la na quarta tentativa. Apresentei-me e disse que gostaria de falar sobre Antônio. A doçura do primeiro contato se transformou em palavras secas e incisivas: “Não quero falar sobre essa pessoa. E o senhor está proibido de me procurar novamente para tratar deste assunto”, adverte Andréia.
Voltei à estação Tatuapé do metrô em busca de Antônio Carlos para dar-lhe notícia sobre Andréia. Não o encontrei. Dei uma volta pelas ruas vizinhas, e nada. Perguntei por ele a Dona Maria, proprietária de uma banca de cachorro quente, em frente ao muro onde dormia Antônio. E foi ela quem me deu a informação: “Ah, moço, encontraram ele morto ontem de manhã, o rabecão veio pegar o corpo era quase meio dia”, relata Maria Aparecida indiferente com o fato.

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